Grande Renúncia: qual a relação entre a onda de demissões nos EUA e a transformação do trabalho?

Grande Renúncia

Em 2021, os EUA registram uma média mensal 4 milhões de pedidos de demissão. Um recorde para o país. Os motivos: cansaço, falta de propósito e busca por qualidade de vida. A pandemia foi um catalisador desse movimento, chamado de Grande Renúncia. Mas suas causas e reflexos tendem a ser mais profundos. Entenda como esse fenômeno pode afetar as relações de trabalho no Brasil. 

Por Bruna Schlisting
Edição Emanuel Neves

São 20h em São Paulo. Marcela, de 34 anos, chega em casa exausta após mais um dia de trabalho. Ela é atendente de um bazar no centro da cidade. Lida com o público. Ouve grosserias constantemente e sofre pressão do chefe para bater metas. Pela manhã e no fim da tarde, Marcela se acotovela com outras dezenas de pessoas por um lugar em um ônibus cheio, em meio à pandemia. Ganha R$ 2 mil por mês. É mãe solteira e mora com o filho de oito anos na periferia. Marcela adora séries. Seu sonho era fazer cinema. Mas cursar a faculdade começa a se tornar uma utopia em razão da rotina desgastante e da limitação financeira. 

Em Michigan (EUA), são 18h. A publicitária Jane, de 27 anos, grava um vídeo para o TikTok. Em tom de desabafo, anuncia que vai deixar o emprego na agência. Cansou-se da rotina corporativa. Nem o aumento de salário para US$ 7 mil dólares e a possibilidade de trabalhar de casa em alguns dias foram suficientes para demovê-la da decisão de seguir um propósito maior. Jane quer investir em seu canal de yoga e levar uma vida menos agitada e próxima da natureza, junto com seu cachorro Sidarta. O vídeo em que ela anuncia sua saída ao chefe alcança 1 milhão de visualizações em dois dias. 

Grande Renúncia: O último apaga a luz

A hashtag #quittingmyjob (desistindo do meu trabalho, em livre tradução) tem mais de 60 milhões de visualizações no TikTok. Os conteúdos seguem roteiros semelhantes ao da fictícia Jane que narramos acima. São pessoas deixando seu emprego e alardeando isso ao mundo. Algumas delas o fazem com certo tom de desaforo, xingando seus superiores. A maior parte reside nos Estados Unidos. O país, aliás, vive uma epidemia de demissões desde o começo de 2021.

Em abril, o Department of Labor (DOL), setor do governo com funções semelhantes às do Ministério do Trabalho, identificou um recorde de 4 milhões de demissões. Os números acenderam o alerta de que algo estava acontecendo com o capital humano americano. E essa avalanche de gente pedindo as contas não parou mais. Em agosto, um novo recorde: 4,3 milhões. A marca foi superada em setembro, quando 4,6 milhões de americanos abandonaram suas vagas. Outros 4 milhões fizeram o mesmo em outubro. 

O levante de demissionários atinge diversas áreas – dos transportes à indústria, passando por serviços e setor financeiro. Em junho, uma pesquisa da Federação Nacional de Negócios Independentes revelou que 46% dos pequenos empresários dos EUA disseram não conseguir funcionários. Mesmo que 39% das empresas tenham elevado as ofertas de salários, reajustado o valor da hora de trabalho ou oferecido bônus a trabalhadores recém-contratados.

Esse fenômeno já tem até nome: Great Resignation. Em português, Grande Renúncia. E pode ser considerado mais uma transformação do mundo do trabalho provocada pela Covid-19.

Novas prioridades 

O termo foi criado pelo psicólogo Anthony Klotz. Especializado em comportamento organizacional, Klotz é professor associado de administração na Mays School of Business, da Texas A&M University. Em 2020, ele vislumbrou uma grande onda de demissões assim que os primeiros impactos da pandemia fossem absorvidos. As incertezas provocadas pela Covid-19 fizeram com que muitas pessoas adiassem a decisão de deixar o emprego. Ou seja, houve um represamento. E a enxurrada veio após o início da vacinação e de uma perspectiva maior de segurança. Entretanto, a Grande Renúncia não se resume a isso.

Ainda não há uma análise científica consolidada sobre o fenômeno. Nem dá para prever se ele irá se sustentar ao longo dos próximos anos. Mas é possível compreendê-lo como um surto de ressignificação do trabalho. “A pandemia proporcionou uma experiência inédita para as atuais gerações, provocando profunda inquietação sobre o sentido e o papel do trabalho em suas vidas”, confirma Maria Aparecida Bridi, professora de sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet). A mudança do ambiente profissional tem muito a ver com isso. 

Grande Renúncia: De volta para casa 

O home office reconfigurou a agenda de trabalho. A flexibilidade desponta como trunfo desse modelo. Klotz destaca a vantagem de o trabalho remoto permitir pausas, antes pouco prováveis. Seja para dar uma volta na quadra com o pet ou acompanhar a rotina de um filho pequeno em concomitância com as atividades do serviço. Para muita gente, entretanto, o home office da pandemia também tornou-se sinônimo de aumento de jornada e de uma falta de divisão entre a rotina profissional e a vida pessoal.

Mesmo assim, diversas pesquisas demonstram uma predileção das pessoas em seguir trabalhando de casa. Um levantamento da consultoria Bare International, divulgado em outubro, apontou que 70% dos brasileiros não querem retornar à rotina presencial como era antes da Covid-19. Já um estudo global da Robert Half, outra consultoria do setor de RH, demonstrou que há um posicionamento radical em relação a esse tema. Em especial, entre o público feminino. Cerca de 44% das mulheres afirmaram que deixariam seus empregos caso a empresa não permitisse o home office ao menos de maneira parcial. O dado foi revelado em outubro, enquanto as demissões batiam novos recordes nos EUA. 

Anseio por mudança

Há casos, entretanto, em que a mera oferta de trabalho remoto não é suficiente para garantir a permanência no emprego. Aqui, entram em cena fatores como o esgotamento causado pelo paradigma atual do trabalho. Questionamentos sobre valores e carreira já faziam parte da mentalidade dos jovens antes mesmo da pandemia. “Eles enxergam e se relacionam com o trabalho de outras formas. Querem mais autonomia e propósito, além de desejarem aprender de maneira participativa e colaborativa. Seus anseios não estão sendo atendidos pelos formatos de relacionamentos das organizações. Natural que busquem atendê-los de outras formas”, analisa a psicóloga Lucimar Delaroli, especializada em desenvolvimento de lideranças e educação corporativa.

O World Trend Index, uma pesquisa da Microsoft realizada com 30 mil trabalhadores de 31 países (incluindo o Brasil), revelou que mais de 40% pretendem mudar de profissão. O dado foi revelado em abril, mesmo mês em que a Grande Renúncia começou a dar seus sinais nos EUA. Como a pandemia descortinou novas possibilidades e formatos de trabalho, Lucimar corrobora a ideia de que o distanciamento social direcionou as pessoas à introspecção e a repensar estilos de vida. Mas ela alerta que não devemos glamourizar a Grande Renúncia. “Tudo isso é realidade para uma pequena parte dos trabalhadores qualificados, fora da vulnerabilidade social, sem adoecimento mental e com recursos para tentar novos caminhos”, ressalta.

Grande Renúncia: um caminho para poucos   

O ponto que Lucimar destaca talvez seja o cerne do debate sobre a Grande Renúncia pela ótica da realidade brasileira. A debandada do trabalho e a opção por qualidade de vida não são caminhos acessíveis a toda a classe trabalhadora – e nem a todos os países. A personagem Marcela, do início da matéria, encontraria extrema dificuldades para abrir mão de seu trabalho em nome de um projeto pessoal. O contexto de vida, a qualificação e a própria atividade exercida são entraves para ela surfar na onda da Grande Renúncia, como Jane fez.

A mais recente atualização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), traz um dado que ilustra essa discrepância. Cerca de 89% dos trabalhadores brasileiros sequer tiveram acesso ao home office depois do início da crise do coronavírus. “Quem pode atuar a distância são trabalhadores de elevada qualificação, em profissões da classe média. Trabalhadores que possuem alta escolaridade e domínio das tecnologias de informação”, ressalta Maria Aparecida Bridi. Não é o caso de pessoas com o perfil de Marcela. A elas, as “epifanias pandêmicas” que Anthony Klotz cita como motores filosóficos da Grande Renúncia talvez jamais tenham acontecido. Não haveria tempo nem condições para isso.

#Procura-seEmprego

Enquanto as hashtags demissionárias bombam no TikTok dos EUA, o LinkedIn brasileiro acompanha a viralização de posts com pedidos desesperados por trabalho. Atualmente, o desemprego atinge cerca de 12,5 milhões de brasileiros (11,6%), segundo o IBGE. Esse número passou de 14 milhões em 2021. Nos EUA, a taxa é de 3,9%, algo próximo de uma situação de pleno emprego. Cenários como esse permitem maiores opções aos trabalhadores, gerando uma dinâmica mais fluida na relação com o trabalho. O reflexo natural é a rotatividade de vagas. “Nos países periféricos, a classe trabalhadora não tem a possibilidade de escolha. A Grande Renúncia pode ocorrer, mas em pequena dimensão”, avalia a professora da UFPR. 

O fenômeno, portanto, também pode chegar ao Brasil. Mas ficaria restrito ao topo da pirâmide laboral. Nessa esfera, a psicóloga Lucimar Delaroli destaca a necessidade de as organizações abandonarem modelos de trabalho anacrônicos. Segundo ela, os headhunters e os setores de RH brasileiros também têm enfrentado a escassez de candidatos qualificados. Todavia, Lucimar acredita que o processo da Grande Renúncia não será tão impactante no Brasil quanto tem sido nos EUA. 

Evasão de cérebros

Um dos sintomas que o país pode verificar a partir dos movimentos notados nos EUA é um acirramento da chamada “evasão de cérebros”. Com a escassez de talentos, as empresas americanas tendem a virar seus radares ainda mais para outros mercados. Isso aumentaria o contingente de globotics – profissionais que trabalham para organizações estrangeiras sem deixar seus países de origem. A própria migração pode aumentar. “O Brasil está formando engenheiros, cientistas e tantas outras profissões que não conseguem sequer se colocar no mercado de trabalho na área de formação. A situação é desalentadora. Por isso, observa-se a saída do país para aqueles que podem, como a classe média. A tentativa de ir para os EUA também cresceu entre os mais pobres. Inclusive com riscos de morte”, aponta Maria, ciando o caso de uma enfermeira brasileira que faleceu ao tentar entrar nos EUA de forma ilegal.

A rigor, a debandada de talentos é uma praxe em países subdesenvolvidos, que não têm ou não investem em recursos necessários ao aprimoramento da comunidade técnico-científica. Essa hemorragia intelectual deixa sequelas na ciência nacional — é o que destaca recente matéria da Piauí sobre a diáspora de cientistas brasileiros. “Apenas nos governos petistas o Brasil atraiu mão de obra. O país virou um canteiro de obras e havia uma política neodesenvolvimentista”, recorda a professora da UFPR. Agora, diz ela, vivemos em um país sem políticas públicas, sem agenda de desenvolvimento econômico, sem valorização de salários, sem políticas de criação e sem fomento do emprego. Por isso, as pessoas fogem e vão buscar trabalho e renda fora daqui.

Efeito cascata 

Numa projeção mais otimista, a Grande Renúncia pode gerar uma maior conscientização das empresas em relação à valorização do capital humano. Mesmo que se inicie em um estrato superior do mercado de trabalho, esse paradigma pode avançar às demais áreas. “Ganhar mal atrapalha a produtividade e o engajamento, mas pagar bem nunca foi sinônimo de empresas mais inovadoras ou lucrativas”, analisa Lucimar. De fato, as empresas precisam arregimentar esforços para melhorar e incluir os trabalhadores em mundos laborais psicologicamente seguros. A ideia é que eles se sintam escutados, incluídos, participativos e com novos aprendizados. Gigantes do varejo como a Amazon, Target e Walmart têm beneficiado seus funcionários custeando mensalidades universitárias, livros e cursos. Isto é, não apenas para os ocupantes de posições estratégicas. As promoções almejam reter talentos, capacitar ainda mais a mão de obra e atrair novos nomes. 

Outro esforço seria uma modulação mais equilibrada das jornadas de home office, com a inclusão da garantia de desconexão. Como frisa a professora Maria Bridi, todo tempo passou a ser tempo de trabalho. A própria flexibilidade como vantagem não pode ser confundida com a perda de direitos assegurados. “Há uma tendência de avanço do trabalho plataformizado, do trabalho sem direitos, como é o caso dos freelancers”, diz Maria. Há casos em que a pretensa flexibilidade é apenas um simulacro que beneficia ainda mais as empresas. “Como se destruir a CLT fosse um mecanismo para criação de emprego de renda. Um grande engodo”, conclui a socióloga.

O Direito Transforma (#ODT) é uma seção voltada para a publicação de artigos e matérias que abordam as mudanças que estão em curso no mundo jurídico e a importância do poder transformador do direito.

Dúvidas sobre direitos trabalhistas?

Para maiores informações, entre em contato com nossos escritórios pelo Whatsapp. Utilize os links abaixo:

Paraná: Gasam Advocacia
Minas Gerais: 
MP&C Advocacia

Demais estados: Clique no ícone do Whatsapp ao lado. Ou acesse a nossa caixa de mensagens.

Especial Trabalho Híbrido – Adoecimento e home office: O preço da produtividade

Adoecimento e home office

A adoção apressada e desorganizada do trabalho remoto pode estar por trás do aumento de doenças ocupacionais verificado desde o início da pandemia. O quadro que relaciona adoecimento e home office deve melhorar com a consolidação do sistema híbrido. Mas exigirá uma postura ativa dos trabalhadores para garantir suporte e responsabilidade por parte das empresas.

Por Bruna Schlisting
Edição – Emanuel Neves

Fadiga, irritabilidade, hiperatividade, insônia, dores nas articulações, cefaleia. Por volta de 460 a.C, o médico e filósofo grego Hipócrates identificou queixas desse tipo em trabalhadores de minas extrativistas. Eles também apresentavam disfunções gastrointestinais com quadros de cólicas. Todos eram vítimas de saturnismo, também chamado de plumbismo, uma intoxicação por chumbo. Essa pode ser considerada a primeira doença laboral já catalogada. Os sintomas que maltratavam os mineiros gregos há 2.500 anos estão presentes em boa parte dos profissionais da atualidade. Mas com um viés bem diferente. É possível identificar manifestações semelhantes nas mais modernas doenças do trabalho. Uma delas é a Síndrome de Burnout, o esgotamento mental causado pelo estresse. O mesmo vale para a Fadiga do Zoom, um reflexo do excesso de reuniões virtuais. A pandemia tornou-se um fator chave para o agravamento desses quadros.

Isso porque a aplicação ostensiva e sem planejamento do home office trouxe impactos nocivos aos trabalhadores. O principal deles é o aumento da jornada. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que o modelo a distância adotado na pandemia estendeu a carga de trabalho em 10%, no mínimo. Mas há números mais contundentes. Em outubro de 2020, uma pesquisa feita pela Oracle em parceria com a Work Intelligence identificou que os brasileiros em home office estavam trabalhando acima da média mundial – 40 horas a mais por mês para 42% dos entrevistados. Não à toa, cerca de 70% deles disseram jamais ter vivido um ano tão estressante quanto 2020. Um quadro que pode ter se agravado em 2021, em razão da continuidade da pandemia. O resultado disso é uma explosão de doenças ocupacionais.  

No ano passado, por exemplo, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) registrou alta de 26% na concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez na comparação com 2019. A principal causa são os transtornos psíquicos, como ansiedade e depressão. Tendinites, lombalgias e mialgias (dores musculares), problemas diretamente relacionados a carências de ergonomia, também entram na lista. Todos se enquadram em Lesões por Esforço Repetitivo (LER) ou Distúrbios Osteomoleculares Relacionados ao Trabalho (Dort).

O home office possível

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) elaborou um guia prático com pesquisas sobre o trabalho na pandemia. O documento salienta os dois principais desafios do home office: o agravamento dos problemas de ordem psicossocial e ergonômicos. Inclusive, ambos podem estar relacionados. O ergonomista José Marçal Jackson Filho, pesquisador da Fundacentro, relata que LER e Dort não têm origem somente fisiológica e podem estar ligadas ao estresse do trabalho. “A intensificação da jornada é comum ao trabalho remoto e ao teletrabalho. O home office, por si só, já expõe o trabalhador aos riscos ergonômicos e organizacionais. Por isso, vemos esse aumento de doenças osteomusculares, do tecido conjuntivo e ligadas a transtornos mentais e comportamentais”, explica o psicólogo André Luís Vizzaccaro-Amaral, coordenador do grupo temático “Trabalho e Saúde” da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet).

Entretanto, a missão de entender a verdadeira relação entre adoecimento e home office não pode prescindir de uma análise contextual. O trabalho remoto não precisa ser sinônimo de sobrecarga. Muito pelo contrário. Um modelo capaz de economizar deslocamentos pode ser a solução para conferir maior eficácia no aproveitamento do tempo e no equilíbrio entre vida profissional e pessoal. “Dizer que o home office adoece e sobrecarrega os trabalhadores é recair no ludismo de achar que a máquina é quem oprime”, avalia o psicólogo Bruno Chapadeiro Ribeiro, professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

À própria sorte

A compreensão de Chapadeiro reforça a ideia de que o problema pode não ser o home office, mas o home office pandêmico. O trabalho remoto compulsório, desprovido de suporte adequado, é o que de fato tem impactado a saúde dos trabalhadores. E isso passa pelo apoio insuficiente recebido pela classe trabalhadora por parte de organizações públicas e privadas. Aqui, a responsabilidade dos empregadores deve ser ressaltada.

Ao longo de 2020, diferentes pesquisas demonstraram que só uma pequena parte dos trabalhadores recebeu suporte das empresas na migração do escritório para casa. Um levantamento feito pela corretora americana Lockton, em dezembro, consultou quase 500 gestores brasileiros sobre as políticas aplicadas na pandemia. Apenas 27% deles haviam oferecido auxílio aos seus funcionários – incluindo questões ergonômicas, políticas de acompanhamento psicológico ou pagamento de despesas oriundas da atividade profissional.

Fica evidente, portanto, que uma fatia significativa dos profissionais em home office teve de achar as suas próprias soluções. E nem sempre foram as ideais. Isso é o que Sergio Amad Costa, professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FVG/EASP), chama de “home working”. Em um artigo sobre o tema, Amad destaca que o trabalhador exerce suas atividades de acordo com o contexto em que vive. Ou seja, é o home office possível, o teletrabalho “do jeito que dá”. Muitas vezes, realizado em local sem iluminação inapropriada ou uma cadeira propícia, aumentando o risco de doenças ocupacionais.

Enquanto a rotina profissional granjeou espaço nesse cenário complexo, a vida pessoal e o entretenimento ficaram quase restritos ao ambiente virtual. Isso explica, em parte, o aumento da jornada revelado pelos estudos ligados ao tema. Migrando de tela em tela ao longo do dia, o trabalhador está a um clique ou a uma aba de voltar a produzir. Quase o tempo todo. Não à toa, cerca de 58% dos brasileiros se sentem mais produtivos ou significativamente mais produtivos em home office. O dado é de uma pesquisa publicada em maio pela Fundação Dom Cabral, em parceria com a Grant Thornton Brasil. Na edição de 2020 do mesmo levantamento, esse índice havia ficado em 44%. A questão é entender qual o preço desse crescimento.

Adoecimento e home office: no corpo e na mente

A acomodação do paradigma remoto não é uma tarefa simples. André Vizzaccaro destaca que os trabalhadores foram submetidos a dois processos de transformação concomitantes: a desterritorialização e a destemporalização. “O primeiro se refere a uma confusão entre o espaço de trabalho e o espaço individual e familiar. Já o segundo leva a uma dificuldade de discernimento entre o tempo do trabalho e o tempo de vida do trabalhador”, diz ele. Ou seja, o empregado catapultado ao home office se viu diante do desafio de ressignificar seu lar e seu dia, em razão de um extravasamento dos limites do trabalho.

Não bastasse isso, a crise econômica e o temor pela contaminação de um vírus potencialmente mortal são elementos que concorrem para turbinar a tensão. O próprio desafio de lidar com um novo arranjo da rotina familiar entra nessa equação. É o que a psicóloga Fabiana Queiroga conceitua como “teletrabalho populoso”. “As dificuldades começam quando você precisa equilibrar o trabalho em casa com os filhos chorando, a aula das crianças, a administração do lar. É algo muito próximo do caos”, define Fabiana, uma das coordenadoras do Prolab Sustentável, grupo de pesquisa voltado à análise de fatores associados ao desempenho produtivo e sustentável no trabalho. 

A pesquisa “ProjeThos Covid-19”, dedicada ao tema da saúde do trabalhador na pandemia, identificou uma grande incidência de sentimentos ligados a medo, angústia, desgaste mental, sobrecarga emocional, fadiga, exaustão e perda da libido nos participantes. O levantamento incluiu professores, funcionários públicos, assistentes sociais, psicólogos, analistas de marketing, jornalistas, bancários e advogados. A pressão por resultados também faz parte dos relatos. “O ‘teleassédio moral” tem sido mencionado com frequência, principalmente por servidores públicos do judiciário”, revela Bruno Chapadeiro, que coordena o estudo ao lado das psicólogas Carmem Giongo e Karine Perez.

O impacto sobre o gênero feminino, com o acúmulo de atividades profissionais e cuidados da casa e da família, tende a ser mais acentuado. O Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo (FMUSP) realizou, entre maio e junho de 2020, um estudo com três mil voluntários homens e mulheres de todas as regiões do país. As mulheres foram as mais afetadas pela pandemia — 40% apresentaram sintomas de depressão, 35% de ansiedade e 37% de estresse. A International Stress Management Association (Isma-BR) também tem noticiado levantamentos sobre o agravamento da Síndrome de Burnout e da Burnout Mommy. A primeira não está relacionada ao gênero, mas a segunda pode ser uma consequência das diversas funções oneradas à mulher.

A solução híbrida

Existem duas armas para mitigar os desequilíbrios provocados pelo home office. O primeiro deles é a vacina. É preciso estourar definitivamente a bolha opressiva da pandemia para que uma realidade menos improvisada e limitante se estabeleça. Tudo indica que esse cenário manifestará elementos do velho normal com traços do atual sistema de trabalho. A ascensão do trabalho híbrido, uma divisão da rotina com alguns dias em casa e outros no escritório, deve amainar uma parte importante das pressões externas do home office.

A partir disso, é possível que floresçam, de forma mais evidente, os pontos positivos desse modelo para a saúde mental e física do trabalhador. Entre eles, Andé Vizzaccaro ressalta a diminuição dos acidentes de trajeto. O tempo e os recursos economizados com os deslocamentos podem ser dedicados a atividades com foco no bem-estar dos empregados. “Até mesmo a desterritorialização e a destemporalização do trabalho produzem efeitos positivos”, afirma o psicólogo, ao enfatizar a proximidade e o tempo com a família. Ou seja, o jogo pode virar.

Ainda assim, haverá cada vez mais empresas e trabalhadores que irão optar por permanecer apenas no sistema remoto. Aqui, faz-se necessária uma mobilização por parte da classe trabalhadora e de seus entes protetivos, com o intuito de assegurar o respeito à saúde dos profissionais. Sem a fiscalização dos trabalhadores, por meio dos sindicatos e dos órgãos públicos, como o Ministério Público do Trabalho, os desequilíbrios tendem a aumentar e a se agravar. Formas antigas de exploração e precarização, portanto, já viriam embarcadas nos novos modelos. “Caso não tenhamos no horizonte a discussão das transformações da organização do trabalho, pouco importa se o sistema será presencial, home office ou híbrido”, alerta Bruno Chapadeiro.

Nesse sentido, a seção #ODT (O Direito Transforma) irá aprofundar o tema da atuação dos sindicatos para uma consolidação benéfica do paradigma híbrido. Essa será a pauta de agosto do Especial Trabalho Híbrido.

Até lá!

#ODT (O Direito Transforma) é a seção do Ecossistema Declatra voltada para a publicação de artigos e matérias que abordam as mudanças que estão em curso no mundo jurídico e a importância do poder transformador do direito. Para dúvidas e comentários, entre em contato.

Especial Trabalho Híbrido – O desafio da sustentabilidade

Trabalho Híbrido

A rotina corporativa nunca mais será a mesma para boa parte das pessoas. O trabalho híbrido, que prega a alternância entre as atividades presenciais e remotas, desponta como a ordem das empresas para o pós-pandemia. A missão, agora, é aparar arestas para que o novo paradigma se torne sustentável não apenas aos empregadores.

Por Emanuel Neves

O ano é 1913. Em Highland Park, estado de Michigan (EUA), o americano Henry Ford engendra um estilo de produção padronizado e semiautomatizado que revoluciona o mercado automobilístico. O fordismo e suas linhas de montagem passam a ditar o tom da indústria de consumo ao longo do século 20, transformando a marca Ford em sinônimo de solidez e tradição. Em maio de 2021, o mundo corporativo em nada se parece com aquele de quase 110 anos atrás. A digitalização dos processos mudou o jeito de fazer as coisas, seja dentro ou fora das empresas, em pequenas ou grandes corporações. As plantas industriais da Ford seguem parindo automóveis, numa orquestração agora regida em parceria com a Inteligência Artificial. Já os seus escritórios ao redor do mundo estão vazios. A companhia anunciou que seus 30 mil funcionários administrativos irão trabalhar de casa. Sem prazo para voltar. É provável, inclusive, que jamais retomem a rotina diária de ocupar os seus postos. Irão à empresa em situações especiais. Ou quando assim quiserem.

A Ford é mais uma das gigantes mundiais que se rende a uma nova revolução laboral – chamada de trabalho híbrido. Essa abordagem tem como principal característica a realocação do espaço produtivo. A estrutura das empresas perde a prerrogativa de ser o único cenário do trabalho. Agora, esse ambiente estará cada vez mais concentrado nos lares dos empregados. Os escritórios continuam úteis, mas sua função será adaptada. No paradigma híbrido, eles representam uma ferramenta de convivência para profissionais que se relacionam majoritariamente de forma virtual. 

Trabalho híbrido: tendência global

O surgimento do trabalho híbrido não foi arquitetado pela mente de algum luminar da gestão. Trata-se de uma acomodação rápida e orgânica aos primeiros impactos causados pela pandemia. A empresa híbrida teve o seu DNA modificado pelo coronavírus. O trabalho remoto tornou-se refúgio e fiador da economia quando a Covid-19 espalhou-se pelo mundo, logo no começo de 2020. Antes da crise sanitária, cerca de 11% das pessoas atuavam em home office. Hoje, esse percentual está em 50%. O dado é de um levantamento global da Willis Towers Watson, uma empresa de gerenciamento de risco e recursos humanos. No Brasil, há uma discrepância de números. o percentual absoluto parece ser menor, ficando na casa de 9% nos últimos meses de 2020, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A pesquisa da Willis Towers Watson aponta que o contingente global em home office não deve baixar de 33% após a pandemia. O Facebook, por exemplo, pretende ter 50% de seus funcionários trabalhando de maneira remota até 2030. Já a Alphabet, holding controladora do Google, mantém apenas 5% dos funcionários concentrados no campus da empresa, em San Francisco. Os demais estão em casa. Por aqui, o banco BMG reduziu um terço da estrutura física de sua sede, localizada em São Paulo. Os 900 funcionários farão rodízio nas 368 estações de trabalho, revezando-se entre as atividades remotas e in loco. Eles irão reservar suas mesas por um aplicativo de celular. Já há quem chame isso de “hotelização dos escritórios”. As grandes corporações puxam a fila da mudança. Mas o modelo híbrido deve chegar à maior parte dos negócios que podem prescindir da presença física.

Medidas assim se devem, sobretudo, à boa performance averiguada pelas empresas no processo de adaptação ao home office. No Brasil, os resultados obtidos com o trabalho remoto em 2020 superaram as expectativas dos gestores em 94% dos casos. O número é de uma pesquisa feita pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Por desempenho, entende-se a manutenção ou elevação da produtividade e a redução de custos. Esses fatores propiciaram uma mudança de visão dos empresários em relação ao home office. 

Home office: o preço da performance

Até o choque da transformação digital ocorrido com a pandemia, o entendimento geral do mercado era diferente. O trabalho remoto, via de regra, era encarado como um benefício extraordinário oferecido aos empregados – especialmente ao público feminino. Mas havia uma resistência por parte dos empregadores quanto a uma possível perda de controle sobre o capital humano. “O home office já vem sendo estudado há muito tempo como uma opção viável e até desejável. Esse modelo, por si, não é bom nem ruim. Vai depender da forma como é aplicado”, explica a psicóloga Fabiana Queiroga, ex-presidente da Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT). Atualmente, ela se dedica ao estudo de temas ligados à transformação do trabalho na universidade de Côte D’Azur, na França. 

O ponto levantado por Fabiana é fundamental para uma análise do atual processo de evolução do teletrabalho para o modelo híbrido. Embora traga vantagens evidentes, como maior flexibilidade de horários e redução dos deslocamentos, o sistema guarda alguns riscos aos trabalhadores. E isso tem muito a ver com o caráter emergencial e compulsório da sua aplicação. A instabilidade do contexto de exceção que tornou o home office ostensivo pode estar por trás da alta performance aferida em 2020.

Isso porque a pandemia virou sinônimo de mais trabalho para quem se fechou em casa. Em média, duas horas a mais por dia na Europa e três nos EUA, de acordo com dados da NordVPN – empresa que fornece serviços de comunicação corporativa. No Brasil, cerca de 46% dos trabalhadores consultados por uma pesquisa do Centro de Inovação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV-EAESP) apontaram aumento do trabalho. E 56% disseram ser difícil equilibrar as atividades profissionais e pessoais no home office. 

A crise econômica e o medo em relação ao novo momento entram nessa equação. No Brasil, por exemplo, a taxa de desemprego está acima de 14% da população economicamente ativa. Cerca de 28% dos brasileiros que estão trabalhando mais justificaram esse acréscimo pela necessidade de mostrar serviço, já que o supervisor pode não notá-los. O dado é de um estudo sobre produtividade e home office feito pela Fundação Dom Cabral. “O medo de perder o sustento foi exacerbado, fazendo com que não se questione exigências esdrúxulas. A produtividade aumentou a custo de um adoecimento muito grande”, define Fabiana Queiroga, que também é coordenadora do Prolab Sustentável, um grupo de pesquisa voltado à análise de fatores associados ao desempenho produtivo e sustentável no trabalho. 

De fato, a carga de trabalho e a dependência do uso de telas para comunicação criaram novos quadros de estresse – como a Fadiga do Zoom, um tipo de esgotamento relacionado ao excesso de videoconferências. Já um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) apontou um aumento de 80% dos casos de ansiedade no país. Os números acompanham um ritmo de crescimento das doenças psicológicas verificado nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Outro item importante se refere aos custos do trabalho remoto. Uma parte substancial desses gastos foi transferida aos trabalhadores. Cerca de 57% dos empregados brasileiros passaram a usar os seus próprios equipamentos no teletrabalho da pandemia. E 68% não receberam auxílio da empresa para esse item. A constatação é de uma pesquisa do DataSenado, feita com 5 mil pessoas. O Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), criou a “cesta home office” para calcular o preço de trabalhar de casa. O levantamento incluiu despesas com água, luz, celular, internet e alimentação, entre outros. Gastos assim podem elevar a conta mensal dos funcionários em até 25%. Dependendo da configuração familiar, o home office chega a representar 35% do orçamento da casa.

Trabalho Híbrido: A nova queda de braço

O ônus do home office, entretanto, não desabona os benefícios trazidos por esse modelo. Tanto que a maior parte das pessoas quer seguir trabalhando assim. Mas não todos os dias. Cerca de 81% dos entrevistados por uma pesquisa da Universidade Harvard Business School disseram querer continuar em home office após a pandemia. A maioria deles (61%) prefere o sistema híbrido, com a possibilidade de ir ao escritório alguns dias por semana. É um resultado semelhante ao detectado no Brasil, onde 66% dos funcionários de pequenas e médias empresas querem o modelo misto. Os turnos presenciais conservam o fator de sociabilização e de criação de vínculos trazidos pela convivência com os colegas.

A busca por um maior equilíbrio entre a rotina profissional e a vida pessoal justifica a inclinação dos trabalhadores pela adoção do trabalho híbrido. Ou seja, ao menos conceitualmente, patrões e empregados convergem para o novo modelo. O desafio, a partir de agora, está na construção de um equilíbrio de forças. A sustentabilidade pode transformar o novo modelo numa solução ideal. Mas essa missão tem lá os seus obstáculos para a classe trabalhadora – especialmente no Brasil. “O home office não é a panaceia para os problemas do trabalho. Existe a necessidade de regular essa atividade. As empresas vão tentar instrumentalizar isso de acordo com a sua conveniência”, avisa o sociólogo Ruy Braga, professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em sociologia do trabalho.

A ascensão do sistema híbrido não está alijada da dicotomia entre trabalho e capital que é intrínseca aos modelos do passado. O que desponta é a demanda por uma reinterpretação desse cabo de guerra. E isso passa, necessariamente, pela mediação do poder público. “O problema é que o governo brasileiro atende a uma agenda de antirregulação”, analisa Braga. “É preciso atentar para pontos que podem levar a uma extensão da jornada de trabalho, a cortes de benefícios trabalhistas e à dificuldade da negociação coletiva. É uma tarefa da justiça”.

Mobilização necessária

No Brasil, a busca pela sustentabilidade do modelo híbrido ganha contornos mais complexos em razão das recentes transformações em âmbito trabalhista. As entidades ligadas aos polos protetivos do trabalho ainda tentam encontrar caminhos para lidar com os impactos nocivos da Reforma Trabalhista, instituída em 2017. Por esse viés, o caráter individualizante do home office e do sistema híbrido pode representar um enfraquecimento ainda maior dos vínculos empregatícios e da aglutinação das forças do trabalho. A Receita Federal recebeu a inscrição de 1,8 milhão de novos Microempreendedores Individuais (MEIs) em 2020. É um acréscimo de 20% sobre o ano anterior.

O novo arranjo trabalhista, entretanto, enseja uma oportunidade de reorganização dos sindicatos, combalidos pelo esvaziamento imposto nos últimos anos. Ruy Braga aponta o sindicalismo bancário, com sua força de articulação e de pleito, como a célula capaz de puxar a fila das mobilizações e tornar-se referência em meio ao cenário de mudança. As entidades representativas do magistério também figuram nessa linha de frente. 

A educação, aliás, sofre um duplo reflexo do trabalho híbrido. O primeiro se refere à adaptação açodada dos professores a um novo modelo de aprendizagem. Um levantamento feito pelo sindicato dos professores do Rio Grande do Sul (CPRS), a partir de dados do Departamento Intersindical de Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), apontou que o home office aumentou a carga de trabalho para 98% dos docentes. Cerca de 40% deles nem sequer tinham internet na velocidade adequada para as aulas online. O outro parâmetro diz respeito à mudança da própria formação profissional. Ou seja, um novo paradigma de trabalho exige um novo tipo de capacitação.

Limites, discrepâncias, readequações, novas forças: de ponta a ponta, o processo de transformação do cenário produtivo proporcionado pelo trabalho híbrido suscita debates e análises. A seção #ODT (O Direito Transforma) irá aprofundar algumas dessas pautas nas próximas matérias do especial. Em junho, o tema será a o adoecimento e o desgaste dos profissionais impostos ao home office no cenário de pandemia.

Até lá!

#ODT (O Direito Transforma) é a seção do Ecossistema Declatra voltada para a publicação de artigos e matérias que abordam as mudanças que estão em curso no mundo jurídico e a importância do poder transformador do direito. Para dúvidas e comentários, entre em contato.