A rotina corporativa nunca mais será a mesma para boa parte das pessoas. O trabalho híbrido, que prega a alternância entre as atividades presenciais e remotas, desponta como a ordem das empresas para o pós-pandemia. A missão, agora, é aparar arestas para que o novo paradigma se torne sustentável não apenas aos empregadores.
Por Emanuel Neves
O ano é 1913. Em Highland Park, estado de Michigan (EUA), o americano Henry Ford engendra um estilo de produção padronizado e semiautomatizado que revoluciona o mercado automobilístico. O fordismo e suas linhas de montagem passam a ditar o tom da indústria de consumo ao longo do século 20, transformando a marca Ford em sinônimo de solidez e tradição. Em maio de 2021, o mundo corporativo em nada se parece com aquele de quase 110 anos atrás. A digitalização dos processos mudou o jeito de fazer as coisas, seja dentro ou fora das empresas, em pequenas ou grandes corporações. As plantas industriais da Ford seguem parindo automóveis, numa orquestração agora regida em parceria com a Inteligência Artificial. Já os seus escritórios ao redor do mundo estão vazios. A companhia anunciou que seus 30 mil funcionários administrativos irão trabalhar de casa. Sem prazo para voltar. É provável, inclusive, que jamais retomem a rotina diária de ocupar os seus postos. Irão à empresa em situações especiais. Ou quando assim quiserem.
A Ford é mais uma das gigantes mundiais que se rende a uma nova revolução laboral – chamada de trabalho híbrido. Essa abordagem tem como principal característica a realocação do espaço produtivo. A estrutura das empresas perde a prerrogativa de ser o único cenário do trabalho. Agora, esse ambiente estará cada vez mais concentrado nos lares dos empregados. Os escritórios continuam úteis, mas sua função será adaptada. No paradigma híbrido, eles representam uma ferramenta de convivência para profissionais que se relacionam majoritariamente de forma virtual.
Trabalho híbrido: tendência global
O surgimento do trabalho híbrido não foi arquitetado pela mente de algum luminar da gestão. Trata-se de uma acomodação rápida e orgânica aos primeiros impactos causados pela pandemia. A empresa híbrida teve o seu DNA modificado pelo coronavírus. O trabalho remoto tornou-se refúgio e fiador da economia quando a Covid-19 espalhou-se pelo mundo, logo no começo de 2020. Antes da crise sanitária, cerca de 11% das pessoas atuavam em home office. Hoje, esse percentual está em 50%. O dado é de um levantamento global da Willis Towers Watson, uma empresa de gerenciamento de risco e recursos humanos. No Brasil, há uma discrepância de números. o percentual absoluto parece ser menor, ficando na casa de 9% nos últimos meses de 2020, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A pesquisa da Willis Towers Watson aponta que o contingente global em home office não deve baixar de 33% após a pandemia. O Facebook, por exemplo, pretende ter 50% de seus funcionários trabalhando de maneira remota até 2030. Já a Alphabet, holding controladora do Google, mantém apenas 5% dos funcionários concentrados no campus da empresa, em San Francisco. Os demais estão em casa. Por aqui, o banco BMG reduziu um terço da estrutura física de sua sede, localizada em São Paulo. Os 900 funcionários farão rodízio nas 368 estações de trabalho, revezando-se entre as atividades remotas e in loco. Eles irão reservar suas mesas por um aplicativo de celular. Já há quem chame isso de “hotelização dos escritórios”. As grandes corporações puxam a fila da mudança. Mas o modelo híbrido deve chegar à maior parte dos negócios que podem prescindir da presença física.
Medidas assim se devem, sobretudo, à boa performance averiguada pelas empresas no processo de adaptação ao home office. No Brasil, os resultados obtidos com o trabalho remoto em 2020 superaram as expectativas dos gestores em 94% dos casos. O número é de uma pesquisa feita pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Por desempenho, entende-se a manutenção ou elevação da produtividade e a redução de custos. Esses fatores propiciaram uma mudança de visão dos empresários em relação ao home office.
Home office: o preço da performance
Até o choque da transformação digital ocorrido com a pandemia, o entendimento geral do mercado era diferente. O trabalho remoto, via de regra, era encarado como um benefício extraordinário oferecido aos empregados – especialmente ao público feminino. Mas havia uma resistência por parte dos empregadores quanto a uma possível perda de controle sobre o capital humano. “O home office já vem sendo estudado há muito tempo como uma opção viável e até desejável. Esse modelo, por si, não é bom nem ruim. Vai depender da forma como é aplicado”, explica a psicóloga Fabiana Queiroga, ex-presidente da Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT). Atualmente, ela se dedica ao estudo de temas ligados à transformação do trabalho na universidade de Côte D’Azur, na França.
O ponto levantado por Fabiana é fundamental para uma análise do atual processo de evolução do teletrabalho para o modelo híbrido. Embora traga vantagens evidentes, como maior flexibilidade de horários e redução dos deslocamentos, o sistema guarda alguns riscos aos trabalhadores. E isso tem muito a ver com o caráter emergencial e compulsório da sua aplicação. A instabilidade do contexto de exceção que tornou o home office ostensivo pode estar por trás da alta performance aferida em 2020.
Isso porque a pandemia virou sinônimo de mais trabalho para quem se fechou em casa. Em média, duas horas a mais por dia na Europa e três nos EUA, de acordo com dados da NordVPN – empresa que fornece serviços de comunicação corporativa. No Brasil, cerca de 46% dos trabalhadores consultados por uma pesquisa do Centro de Inovação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV-EAESP) apontaram aumento do trabalho. E 56% disseram ser difícil equilibrar as atividades profissionais e pessoais no home office.
A crise econômica e o medo em relação ao novo momento entram nessa equação. No Brasil, por exemplo, a taxa de desemprego está acima de 14% da população economicamente ativa. Cerca de 28% dos brasileiros que estão trabalhando mais justificaram esse acréscimo pela necessidade de mostrar serviço, já que o supervisor pode não notá-los. O dado é de um estudo sobre produtividade e home office feito pela Fundação Dom Cabral. “O medo de perder o sustento foi exacerbado, fazendo com que não se questione exigências esdrúxulas. A produtividade aumentou a custo de um adoecimento muito grande”, define Fabiana Queiroga, que também é coordenadora do Prolab Sustentável, um grupo de pesquisa voltado à análise de fatores associados ao desempenho produtivo e sustentável no trabalho.
De fato, a carga de trabalho e a dependência do uso de telas para comunicação criaram novos quadros de estresse – como a Fadiga do Zoom, um tipo de esgotamento relacionado ao excesso de videoconferências. Já um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) apontou um aumento de 80% dos casos de ansiedade no país. Os números acompanham um ritmo de crescimento das doenças psicológicas verificado nos Estados Unidos e no Reino Unido.
Outro item importante se refere aos custos do trabalho remoto. Uma parte substancial desses gastos foi transferida aos trabalhadores. Cerca de 57% dos empregados brasileiros passaram a usar os seus próprios equipamentos no teletrabalho da pandemia. E 68% não receberam auxílio da empresa para esse item. A constatação é de uma pesquisa do DataSenado, feita com 5 mil pessoas. O Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas (FGV), criou a “cesta home office” para calcular o preço de trabalhar de casa. O levantamento incluiu despesas com água, luz, celular, internet e alimentação, entre outros. Gastos assim podem elevar a conta mensal dos funcionários em até 25%. Dependendo da configuração familiar, o home office chega a representar 35% do orçamento da casa.
Trabalho Híbrido: A nova queda de braço
O ônus do home office, entretanto, não desabona os benefícios trazidos por esse modelo. Tanto que a maior parte das pessoas quer seguir trabalhando assim. Mas não todos os dias. Cerca de 81% dos entrevistados por uma pesquisa da Universidade Harvard Business School disseram querer continuar em home office após a pandemia. A maioria deles (61%) prefere o sistema híbrido, com a possibilidade de ir ao escritório alguns dias por semana. É um resultado semelhante ao detectado no Brasil, onde 66% dos funcionários de pequenas e médias empresas querem o modelo misto. Os turnos presenciais conservam o fator de sociabilização e de criação de vínculos trazidos pela convivência com os colegas.
A busca por um maior equilíbrio entre a rotina profissional e a vida pessoal justifica a inclinação dos trabalhadores pela adoção do trabalho híbrido. Ou seja, ao menos conceitualmente, patrões e empregados convergem para o novo modelo. O desafio, a partir de agora, está na construção de um equilíbrio de forças. A sustentabilidade pode transformar o novo modelo numa solução ideal. Mas essa missão tem lá os seus obstáculos para a classe trabalhadora – especialmente no Brasil. “O home office não é a panaceia para os problemas do trabalho. Existe a necessidade de regular essa atividade. As empresas vão tentar instrumentalizar isso de acordo com a sua conveniência”, avisa o sociólogo Ruy Braga, professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em sociologia do trabalho.
A ascensão do sistema híbrido não está alijada da dicotomia entre trabalho e capital que é intrínseca aos modelos do passado. O que desponta é a demanda por uma reinterpretação desse cabo de guerra. E isso passa, necessariamente, pela mediação do poder público. “O problema é que o governo brasileiro atende a uma agenda de antirregulação”, analisa Braga. “É preciso atentar para pontos que podem levar a uma extensão da jornada de trabalho, a cortes de benefícios trabalhistas e à dificuldade da negociação coletiva. É uma tarefa da justiça”.
Mobilização necessária
No Brasil, a busca pela sustentabilidade do modelo híbrido ganha contornos mais complexos em razão das recentes transformações em âmbito trabalhista. As entidades ligadas aos polos protetivos do trabalho ainda tentam encontrar caminhos para lidar com os impactos nocivos da Reforma Trabalhista, instituída em 2017. Por esse viés, o caráter individualizante do home office e do sistema híbrido pode representar um enfraquecimento ainda maior dos vínculos empregatícios e da aglutinação das forças do trabalho. A Receita Federal recebeu a inscrição de 1,8 milhão de novos Microempreendedores Individuais (MEIs) em 2020. É um acréscimo de 20% sobre o ano anterior.
O novo arranjo trabalhista, entretanto, enseja uma oportunidade de reorganização dos sindicatos, combalidos pelo esvaziamento imposto nos últimos anos. Ruy Braga aponta o sindicalismo bancário, com sua força de articulação e de pleito, como a célula capaz de puxar a fila das mobilizações e tornar-se referência em meio ao cenário de mudança. As entidades representativas do magistério também figuram nessa linha de frente.
A educação, aliás, sofre um duplo reflexo do trabalho híbrido. O primeiro se refere à adaptação açodada dos professores a um novo modelo de aprendizagem. Um levantamento feito pelo sindicato dos professores do Rio Grande do Sul (CPRS), a partir de dados do Departamento Intersindical de Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), apontou que o home office aumentou a carga de trabalho para 98% dos docentes. Cerca de 40% deles nem sequer tinham internet na velocidade adequada para as aulas online. O outro parâmetro diz respeito à mudança da própria formação profissional. Ou seja, um novo paradigma de trabalho exige um novo tipo de capacitação.
Limites, discrepâncias, readequações, novas forças: de ponta a ponta, o processo de transformação do cenário produtivo proporcionado pelo trabalho híbrido suscita debates e análises. A seção #ODT (O Direito Transforma) irá aprofundar algumas dessas pautas nas próximas matérias do especial. Em junho, o tema será a o adoecimento e o desgaste dos profissionais impostos ao home office no cenário de pandemia.
Até lá!
#ODT (O Direito Transforma) é a seção do Ecossistema Declatra voltada para a publicação de artigos e matérias que abordam as mudanças que estão em curso no mundo jurídico e a importância do poder transformador do direito. Para dúvidas e comentários, entre em contato.